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sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Um pouco de história: Rouen-Les-Essarts

A França, sem sombra de dúvidas, é um dos principais palcos do automobilismo mundial. Revelou verdadeiros gênios ao volante, como o multicampeão Alain Prost, entre outros grandes nomes das corridas, como Didier Pironi, Jacques Laffite, François Cevert e Jean Alesi. Também possui equipes de história e prestígio, como Renault e Ligier. E, por tabela, circuitos emblemáticos e que carregam consigo histórias inesquecíveis, como Le Mans Sarthe, Pau, Paul Ricard, Reims, Dijon-Prenois e mais uma proção deles que seguramente não caberiam nos dedos de duas mãos.
Entre tantos palcos ilustres da terra de Zidane, um deles não poderia faltar. Rouen-Les-Essarts é a verdadeira descrição do que é chamado de circuito que "separa os homens dos meninos". Imprevisível, perigoso, desafiador. Todos esses predicados fazem do traçado francês figurinha carimbada quando o assunto é desafio ao volante.

Rouen em seu primeiro traçado, datado de 1950
No entanto, engana-se quem pensa que o traçado está localizado na cidade que seu nome carrega. Ao contrário do que a lógica sugere, Rouen-Les-Essarts está situado em Grand-Couronne, uma pequena e pacata comuna nos arredores de Rouen. E você deve estar se perguntando: "Não fica em Rouen, fica numa comuna que não tem nada a ver com o nome do circuito...e esse Les-Essarts? O que significa isso?"
Há uma explicação. Les Essarts se trata de uma minúscula vila, também nas adjacências da região, incorporada à comuna de Grand-Couronne em 1874. Derivando daí a extensão hifenizada do nome do circuito, uma junção de Rouen e Les Essarts.
E a história da pista nos remete a um passado de 60 anos de existência. Em 1949, poucos anos depois do término do terror da Segunda Guerra Mundial, o mundo começava a voltar a reestabelecer sua rotina, incluindo nisso as atividades esportivas, como o automobilismo. Naquele ano, havia sido decidido a construção de uma nova estrada que ligaria Essarts até Orival. Partindo da oportunidade, o Automóvel Clube da Normandia (ACN) pediu a permissão para o uso da nova estrada para a realização de competições de esporte a motor. Assim que o aval foi dado, foram imediatamente iniciadas as obras de construção das áreas dos boxes, arquibancadas e paddocks.

 Uma série de obras em tempo recorde deixou Rouen pronta para receber suas primeiras competições no início dos anos 50
Após muito trabalho e com as obras prontas em um período bastante curto, o circuito de Rouen-Les-Essarts foi inaugurado (e nomeado) oficialmente pelo então presidente da ACN, Jean Savale, em 30 de julho de 1950. A data reservou também as primeiras corridas do local, entre elas o primeiro Grand Prix de Rouen, vencido pelo francês Louis Rosier, guiando um Talbot.
Nos seus primórdios, o traçado de Rouen-Les-Essarts era um pouco diferente de sua versão mais conhecida e que até hoje é eternizada no Grand Prix Legends (GPL). Por cinco anos, até 1955, a extensão da pista era de 5100 metros, mas que já chamava a atenção pela fantástica sequência inicial de curvas de média e alta velocidades em uma forte descida, sucedida por uma freada extremamente técnica, feita em curva, que levava a um apertado grampo, batizado de Nouveau Monde. Quem é adepto do GPL provavelmente considera o trecho um dos pontos mais críticos em termos de pilotagem.
Em 1955, Rouen sofreu uma mudança significativa em seu traçado. Seguindo o verdadeiro lema de "em time que está ganhando não se mexe", toda a primeira metade do circuito parmaneceu inalterada. No entanto, a pista ganhou um complemento logo após a curva Beauval. Mais obras proporcionaram uma nova seção, sendo esta de altíssima velocidade, trazendo para uma longa curva à direita (Gresil), uma grande reta que se tornou o principal ponto de ultrapassagens, seguida por uma forte freada para a inédita Scierie. Com isso, a pista passava a ter 6542 metros.

 A morte de Jo Schlesser, em 1968, afastou definitivamente a F1 do perigoso circuito
Esta configuração é considerada a mais marcante do circuito, principalmente pelo fato da versão ter recebido as máquinas da F1 entre as décadas de 50 e 60, em um total de cinco oportunidades. A primeira delas, vencida por Alberto Ascari, foi em 1952, ainda no traçado antigo. Rouen ainda abrigou a categoria nos anos de 1957, 1962, 1964 e 1968, sendo que o único piloto a triunfar nela mais de uma vez foi o norte-americano Dan Gurney, vitorioso em 1962 e 1964.
A edição de 1968, além de registrar o belga Jacky Ickx como o último vencedor da F1 em Rouen, também foi marcada pela trágica morte do francês Jo Schlesser. O heroi local, em apenas 2 voltas de corrida, escapou na Six Fréres e bateu forte em um barranco, o que levou seu Honda RA302 a ser imediatamente tomado pelas chamas, vitimando o piloto. A fatalidade culminou com o abandono da Honda da categoria, voltando somente quase 40 anos depois.

 Jacky Ickx fez prevalecer seu enorme talento sob chuva e foi o último vencedor da F1 em Rouen, no ano de 1968
Sem receber novamente a Fórmula 1, Rouen passou a sediar nos anos seguintes categorias menores, como a F2 e a F3. mesmo assim, isto não lhe espantou o rótulo de pista altamente perigosa. Em 1970, duas promessas francesas, Denis Dayan e Jean-Luc Salomon, também foram vítimas fatais das armadilhas de Rouen em um evento de Fórmula 3.
A preocupação com a segurança do circuito levou à uma série de modificações.Em 1971, como medida provisória, foram instaladas duas chicanes artificiais nas curvas Gresil e Paradis, com o intuito de reduzir a velocidade dos bólidos, que se tornavam cada vez mais potentes e violentos para as fortes exigências do traçado.
O ano seguinte trouxe uma mudança radical. A construção de uma nova autoestrada aposentou a seção de altíssima velocidade inaugurada em 1955. Com isso, a Gresil foi antecipada, sendo seguida agora por uma nova série de curvas que terminavam na Paradis, esta sendo transferida alguns metros adiante de onde se situava. A grande reta e a Scierie estavam aposentadas e, após todas essas alterações, Rouen havia sido enxugada para 5543 metros, além da adição de uma chicane logo após a primeira curva do circuito.

Cenário de uma destruição: em 1999, tudo que ainda lembrava o circuito foi colocado ao chão
O ano de 1974 trouxe a última alteração no traçado. Após a morte do piloto Gerry Birrell em uma prova de F2 no anos anterior, foi instalada uma chicane permanente na Six Fréres, local da morte de Schlesser. O circuito continuou recebendo a categoria até 1978, quando seu maior evento passou a ser a Fórmula 3 Francesa. Com o passar do tempo, Rouen foi se tornando cada vez mais perigosa e ultrapassada para as competições de esporte a motor, mesmo para os carros menos potentes.
A F3 local seguiu utilizando a pista para competições até 1993, quando finalmente resolveu interromper as atividades por lá. Foi o estopim para a morte de Rouen, que foi oficialmente fechada em 1994, por motivos econômicos e de segurança. Cinco anos mais tarde, parte da história das corridas no local sofreu uma grande perda, com a demolição das arquibancadas, boxes, sinalizações de pista e paddock. A lendária Nouveau Monde, marcante pelo seu piso semelhante à de uma calçada, foi asfaltada.

Rouen e suas variantes ao longo dos anos. Em azul, o traçado lendário, que recebeu quatro corridas de F1 e é figura carimbada até hoje no GPL (clique para ampliar)
Ainda em 1987, foi apresentado um projeto que poderia ter salvado o circuito. A nova empreitada consistia em fazer uma mudança radical na pista, a partir da utilização de um novo conjunto de seções, sob a opção de duas variantes, sendo a menor delas com 2700 metros e a maior com 4500 metros. Mas as conversas não foram adiantes e a remodelação ficou só no papel.

 A única lembrança de Rouen-Les-Essarts pode ser reconhecida pelas estradas e placas
Até hoje é possível andar normalmente com um carro convencional pelas antigas seções do traçado. Traçado que cultou gênios como Dan Gurney, Juan Manuel Fangio, Jacky Ickx, que proporcionou tragédias e tantas outras corridas memoráveis.
Um traçado que separa os homens dos meninos.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Uma história de quase 2 mil anos; uma história de lutas

Para muitos fãs do automobilismo em geral, a primeira memória que se pode ter quando se é escutado o termo "Rouen", é "daquele circuito que tem uma baita freada complicada em curva na descida" ou do "curvão longo que é um desafio fazer de pé embaixo".
Certamente, esta avaliação não deixa de ser correta, mas muitos podem desconhecer a história daquela cidade que tem em seu autódromo apenas uma página de um livro de quase 2 mil anos de fatos. Pois bem, essa é Rouen. Ou melhor, Ruão, para nossa língua portuguesa. Mas, dados os hábitos automobilísticos de sempre chamarmos o circuito de Rouen, vamos tratar aqui a cidade pela sua grafia tradicional da língua francesa.
Atualmente, Rouen é a capital da Alta Normandia e do departamento de Sena Marítimo, situada no noroeste da França. Considerada uma das cidades mais prósperas do país na idade média, hoje a histórica municipalidade representa um lugar de população relativamente moderada, com seus aproximadamente 110 mil habitantes e uma área de pouco mais de 21 km². Se não é um vilarejo quase abandonado, também não pode ser considerada uma grande metrópole.
Vista áerea de Rouen, cortada pelo Rio Sena

Apesar do aparente período de calmaria e forma discreta pelo qual a cidade atravessa nos dias atuais, a história de Rouen reserva fatos totalmente contrários. Fundada no primeiro século da nossa era (sob o nome Rotomagus), o município começou começou a se desenvolver dois séculos depois, a partir da forte presença cultural.
Rouen é uma cidade muito sofrida em sua história, dominada por invasões, guerras e tragédias. Primeiramente ao voltarmos ao século IX, quando a invasão dos vikings acabou por ligar as posses da Normandia à Inglaterra, através do duque Guilherme, o Conquistador. Quase 200 anos depois, em 1204, Roune voltaria a ser anexada à França, por Filipe II.
Os próximos séculos reservaram para a cidade momentos de tragédias e guerras, ao sofrer com a famosa Guerra dos Cem Anos e a temida peste negra, causadora da morte de milhões de pessoas. Ainda nesta ocasião, foi justamente em Rouen, após ser tomada pelos ingleses, que foi aprisionada e executada Joana d'Arc, em 30 de maio de 1431.

 A Catedral de Ruão ficou com boa parte de sua composição destruída pela brutalidade da Segunda Guerra Mundial

Felizmente, o perído renascentista reservou prosperidade para o local outrora devastado pelas tragédias. A economia teve seu desenvolvimento graças à pesca, o sal e a tecelagem, com esta última atividade inclusive gerando relações comerciais com o Brasil, já que havia um forte interesse dos comerciantes do ramo pelo pau-brasil, que proporcionava o pigmento vermelho necessário aos tecidos.
Mas o período de crescimento voltou a ter um forte retrocesso nos séculos posteriores. Pouco influenciada pela Revolução Francesa, Rouen chegou a um nível altíssimo de pobreza no século XVIII, onde dentre um total de 80 mil habitantes, 50 mil deles (!) eram considerados indigentes.
Seguindo a tendência mundial da época, a cidade passou a se industrializar no século seguinte, o que gerou a construção de fábricas de tecidos, chegada de tens, museus, teatros. Enfim, havia uma prosperidade paralela no que se refere à cultura.

 A Igreja de Saint-Maclou é mais uma das obras arquitetônicas milenares de Rouen

No entanto, a história de Rouen sofreria mais um baque, causado pela famigerada Segunda Guerra Mundial, onde a cidade foi invadida em 1940 pelas forças nazistas e bombardeada severamente, o que resultou na morte de aproximadamente 2 mil pessoas. Ela seria libertada somente quatro anos mais tarde, pelas tropas canadense. A partir daí, como em várias outras praças destruídas pela guerra, foi iniciado um processo de reconstrução da cidade.
Hoje, Rouen parece ter se livrado do passado doloroso e se configura como uma cidade tranquila, onde prevalecem as construções históricas, um centro revalorizado e livre da circulação de carros em alguns pontos. A cidade é palco de importantes pontos turísticos, como a Catedral de Ruão, a Igreja de Saint-Maclou, o jardim botânico, a universidade local e uma série de museus que ajudam a manter forte sua farta  memória bimilenar.
O automobilismo em Rouen também não se liga somente ao circuito homônimo. O piloto Philippe Étancelin foi um dos corredores do primeiro GP da história da F1, em 1950, e é até hoje o piloto mais velho a pontuar em uma corrida da categoria, ao somar - aos 53 anos de idade - 2 pontos no GP da Itália daquele mesmo ano, frutos de um 5º lugar obtido.

 A Catedral de Ruão é até hoje visitada por milhares de turistas

Além de Étancelin, o famoso jogador de futebol David Trezeguet, ídolo da Juventus e da seleção francesa nas décadas de 90 e 2000, também é um cidadão natural de Rouen.
Como podemos ver, Rouen mostra como que uma cidade, mesmo com fortes altos e baixos, pode se reerguer tantas vezes e permancer sólida por milênios. Um lugar que criou herois também dentro das pistas, mas este é um capítulo que fica reservado para nosso próximo texto.